sábado, 29 de dezembro de 2012

Um dia em branco

Dai-me um dia branco, um mar de beladona
Um movimento
Inteiro, unido, adormecido
Como um só momento.

Eu quero caminhar como quem dorme
Entre países sem nome que flutuam.

Imagens tão mudas
Que ao olhá-las me pareça
Que fechei os olhos.

Um dia em que se possa não saber.



Sophia de Mello Breyner Andresen
Antologia
Círculo de Poesia
Moraes Editores
1975


Poesia escolhida por Manuela Pinto
Fotografia: Fernando Andrezo

domingo, 23 de dezembro de 2012

Fernão Capelo Gaivota



A maior parte das gaivotas não se querem incomodar a aprender mais do que os rudimentos do voo, como ir da costa à comida e voltar. Para a maior parte das gaivotas, o que importa não é saber voar, mas comer, como de resto a maior parte dos seres humanos. Porém, para esta gaivota, o mais importante não era comer, mas sim voar, saber mais, conhecer mais 'alto'.

Mais que tudo, Fernão Capelo Gaivota adorava voar. Mas, como veio a descobrir, esta maneira de pensar e de ser diferente não o fazia muito popular entre as outras aves, em especial dos 'chefes do bando' que o obervavam desconfiados. Até os próprios pais se sentiam desanimados ao verem que Fernão passava os dias sozinho, a experimentar, a cogitar, fazendo centenas de voos...

Não sabia porquê, mas, por exemplo, quando voava sobre a água a uma altitude inferior ao comprimento das suas asas abertas, conseguia manter-se no ar durante mais tempo e com menos esforço. Os seus voos não acabavam com o habitual mergulhar de patas abertas no mar, mas com um pousar leve, de patas bem unidas ao corpo. Quando começou a pousar em pé sobre a praia e depois a medir o comprimento da aterragem, os pais ficaram deveras preocupados.

-Porquê? Fernão, porquê? - perguntava-lhe a mãe - Por que não podes ser como o resto do bando? Por que não deixas os voos rasos para os pelicanos e para o albatroz?

Por que não comes? Filho, és só penas e osso!


-Não me importo de ser só penas e ossos, mãe. Só quero saber aquilo que consigo fazer no ar, e o que não consigo, mais nada. Só quero saber.


-Ouve lá, Fernão - disse-lhe o pai com bondade - O Inverno aproxima-se, haverá poucos barcos e o peixe das superfícies irá para zonas mais profundas. Essa história dos voos está muito bem, mas sabes que não te podes alimentar só disso. Se tens mesmo de estudar, então estuda a comida e a forma de a conseguir. Não te esqueças que a razão por que voas é comer.

Fernão baixou a cabeça, obediente. Durante os dias seguintes tentou comportar-se como todas as outras gaivotas, tentou mesmo a sério, disputando com o resto do bando a comida dos pontões e dos barcos de pesca, mergulhando para apanhar pedaços de peixes e pão. Mas não conseguiu.

"É tão inútil", pensou, deixando cair deliberadamente uma anchova, que lhe custara bastante a apanhar, aos pés de uma velha gaivota que o perseguia. Poderia ter passado todo este tempo a aprender a voar...

E há tanto para apender!


        Richard Bach, Fernão Capelo Gaivota

        Por Manuela Pinto
        Fotografia de Fernando Andrezo

domingo, 16 de dezembro de 2012

Paisagem



Passavam pelo ar aves repentinas,
O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areia as suas crinas.


Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,
Era a carne das árvores elástica e dura,
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.

Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.

Eram os pinheirais onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
E a sua exalação afirmativa.

Era a verdade e a força do mar largo,
Cuja voz, quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.


            Poema escolhido por Manuela Pinto
            Sophia de Mello Breyner Andresen
            Obra Poética I
            Caminho
            Fotografia tirada por Fernando Andrezo



quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Tarde no mar


A tarde é de oiro rútilo: esbraseia.
O horizonte: um cacto purpurino.
E a vaga esbelta que palpita e ondeia,
Com uma frágil graça de menino,

Pousa o manto de arminho na areia
E lá vai, e lá segue o seu destino!
E o sol, nas casas brancas que incendeia,
Desenha mãos sangrentas de assassino!

Que linda tarde aberta sobre o mar!
Vai deitando do céu molhos de rosas
Que Apolo se entretém a desfolhar...

E, sobre mim, em gestos palpitantes,
As tuas mãos morenas, milagrosas,
São as asas do sol, agonizantes...

                      Florbela Espanca

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Debaixo das Oliveiras


Este foi o mês em que cantei
dentro de minha casa
debaixo
das oliveiras.

O mês em que a brisa me pôs nas mãos
uma harpa de folhas
e a terra me emprestou
sua flauta e sua lua.
Maré viva. Meu sangue atravessado
por um cometa visível a olho nu
tangido por satélites e aves de arribação
navegado por peixes desconhecidos.

Este foi o mês em que cantei
como quem morre e ressuscita
no terceiro dia
de cada sílaba.

O mês em que subi a uma colina
dentro de minha casa
olhei a terra e o mar
depois cantei
como quem faz com duas pedras
o primeiro lume. Palavras
e pedras. Palavras e lume
de uma vida.

Este foi o mês em que fui a um lugar santo
dentro de minha casa.
O mês em que saí dos campos
e me banhei no rio como quem se baptiza
e cantei debaixo das oliveiras
as mãos cheias de terra. Palavras
e terra
de uma vida.

Este foi o mês em que cantei
como quem espelha ao vento suas cinzas
e cresce de seu próprio adubo
carregado de folhas. Palavras
e folhas
de uma vida.

O mês em que a mulher
tocou meus ombros com sua graça
e me deu a beber
a água pura do seu poço.
Este foi o mês em que o filho
derramou dentro de mim
o orvalho e o sol
de sua manhã.

O mês em que cantei
como quem de si se perde e reencontra
nas coisas novamente nomeadas.

Este foi o mês em que atravessei montanhas
e cheguei a um lugar onde as palavras
escorriam leite e mel.
MILAGRE MILAGRE gritaram dentro de mim
as aves todas da floresta.

Então reparei que era o lugar do poema
o lugar santo onde cantei
entre mulher e o filho
como quem dá graças.

Este foi o mês em que cantei
dentro de minha casa
debaixo
das oliveiras.

                     Manuel Alegre

domingo, 18 de novembro de 2012

Nuvens correndo num rio


Nuvens correndo num rio
Quem sabe onde vão parar?
Fantasma do meu navio
Não corras, vai devagar!

Vais por caminhos de bruma
Que são caminhos de olvido.
Não queiras, ó meu navio,
Ser um navio perdido.

Sonhos içados ao vento
Querem estrelas varejar!
Velas do meu pensamento
Aonde me quereis levar?

Não corras, ó meu navio
Navega mais devagar,
Que nuvens correndo em rio,
Quem sabe onde vão parar?

Que este destino em que venho
É uma troça tão triste;
Um navio que não tenho
Num rio que não existe.

                      Natália Correia

sábado, 17 de novembro de 2012

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O Recreio


Na minha Alma há um balouço
Que está sempre a balouçar ---
Balouço à beira dum poço,
Bem difícil de montar...

--- E um menino de bibe
Sobre ele sempre a brincar...

Se a corda se parte um dia
(E já vai estando esgarçada),
Era uma vez a folia:
Morre a criança afogada...

--- Cá por mim não mudo a corda,
Seria grande estopada...

Se o indez morre, deixá-lo...
Mais vale morrer de bibe
Que de casaca... Deixá-lo
Balouçar-se enquanto vive...

--- Mudar a corda era fácil...
Tal ideia nunca tive...

               Mário de Sá-Carneiro

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Uma Pequenina Luz

 Jorge de Sena por Samuel Úria

Cais

Ténue é o cais 
no Inverno frio. 
Ténue é o voo 
do pássaro cinzento. 
Ténue é o sono 
que adormece o navio. 
No vago cais 
do balouço da bruma 
ténue é a estrela 
que um peixe morde. 
Ténue é o porto 
nos olhos do casario. 
Mas o que em fora nos dilui 
faz-nos exactos por dentro. 

             Fernando Namora
             in 'Marketing'

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Praia do Esquecimento

Fujo da sombra; cerro os olhos: não há nada. 
A minha vida nem consente 
rumor de gente 
na praia desolada. 

Apenas decisão de esquecimento: 
mas só neste momento eu a descubro 
como a um fruto rubro 
de que, sem já sabê-lo, me sustento. 

E do Sol amarelo que há no céu 
somente sei que me queimou a pele. 
Juro: nem dei por ele 
quando nasceu. 

                David Mourão-Ferreira
                in "Tempestade de Verão"

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Mar Português



 

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma nao é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

                    Fernando Pessoa
                    in Mensagem

domingo, 11 de novembro de 2012

Pobre Velha Música!


Pobre velha música! 
Não sei por que agrado, 
Enche-se de lágrimas 
Meu olhar parado. 

Recordo outro ouvir-te, 
Não sei se te ouvi 
Nessa minha infância 
Que me lembra em ti. 

Com que ânsia tão raiva 
Quero aquele outrora! 
E eu era feliz? Não sei: 
Fui-o outrora agora. 

           Fernando Pessoa
           in "Cancioneiro"

sábado, 10 de novembro de 2012

Arrojos


Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.

Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as mãos mignonnes e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.

Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos nocturnos.

Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.

Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.

Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.

Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.

E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.

                        Cesário Verde
                        Lisboa, Diário de Notícias, 22 de Março de 1874

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Flores para Coimbra


Que mil flores desabrochem. Que mil flores
(outras nenhumas) onde amores fenecem
que mil flores floresçam onde só dores
florescem.

Que mil flores desabrochem. Que mil espadas
(outras nenhumas não)
onde mil flores com espadas são cortadas
que mil espadas floresçam em cada mão.

Que mil espadas floresçam
onde só penas são.
Antes que amores feneçam
que mil flores desabrochem. E outras nenhumas não.

                                   Manuel Alegre

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Anoitecer


A luz desmaia num fulgor d’aurora,

Diz-nos adeus religiosamente…
E eu que não creio em nada, sou mais crente
Do que em menina, um dia, o fui… outrora…

Não sei o que em mim ri, o que em mim chora,
Tenho bênçãos de amor pra toda a gente!
E a minha alma, sombria e penitente
Soluça no infinito desta hora!

Horas tristes que vão ao meu rosário…
Ó minha cruz de tão pesado lenho!
Ó meu áspero e intérmino Calvário!

E a esta hora tudo em mim revive:
Saudades de saudades que não tenho…
Sonhos que são os sonhos dos que eu tive…

                       Florbela Espanca

                       A mensageira das violetas

Por Entre os Sons da Música

Por entre os sons da música, ao ouvido 
como a uma porta que ficou entreaberta 
o que se me revela em ter sentido 
é o que por essa música encoberta 

acena em vão do outro lado dela 
e eu sinto como a voz que respondesse 
ao que em mim não chamou nem está nela, 
porque é só o desejar que aí batesse. 

                 Vergílio Ferreira
                 in 'Conta-Corrente 1'

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Ser Doido-Alegre, que Maior Ventura!

Ser doido-alegre, que maior ventura! 
Morrer vivendo p'ra além da verdade. 
É tão feliz quem goza tal loucura 
Que nem na morte crê, que felicidade! 

Encara, rindo, a vida que o tortura, 
Sem ver na esmola, a falsa caridade, 
Que bem no fundo é só vaidade pura, 
Se acaso houver pureza na vaidade. 

Já que não tenho, tal como preciso, 
A felicidade que esse doido tem 
De ver no purgatório um paraíso... 

Direi, ao contemplar o seu sorriso, 
Ai quem me dera ser doido também 
P'ra suportar melhor quem tem juízo. 

                   António Aleixo
                   in "Este Livro que Vos Deixo..."

Joga Todo o Teu Ser na Breve Ideia

Joga todo o teu ser na breve ideia 
que incerta entre o corrente te procura 
pra lá do que banal te prende e enleia 
e pelo destacá-la emerge pura. 

Fazê-lo é dar-lhe já o que perdura. 
Porque a banalidade que a medeia 
como à pedra vulgar por entre a areia 
esquece o que em tomá-la a rareia. 

Ser homem é escolher o que o oriente 
e ser-lhe o mais a margem que lhe mente. 

                   Vergílio Ferreira
                   in 'Conta-Corrente 1'

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Meditação do Duque de Gândia

Meditação do Duque de Gândia de Sophia de Mello Breyner Andresen

por Rita Loureiro



Manias

O mundo é velha cena ensanguentada. 
Coberta de remendos, picaresca; 
A vida é chula farsa assobiada, 
Ou selvagem tragédia romanesca. 

Eu sei um bom rapaz, - hoje uma ossada -, 
Que amava certa dama pedantesca, 
Perversíssima, esquálida e chagada, 
Mas cheia de jactância, quixotesca. 

Aos domingos a déia, já rugosa, 
Concedia-lhe o braço, com preguiça, 
E o dengue, em atitude receosa, 

Na sujeição canina mais submissa, 
Levava na tremente mão nervosa, 
O livro com que a amante ia ouvir missa! 

                   Cesário Verde
                   in 'O Livro de Cesário Verde'

domingo, 4 de novembro de 2012

Mãe

Mãe: 
Que desgraça na vida aconteceu, 
Que ficaste insensível e gelada? 
Que todo o teu perfil se endureceu 
Numa linha severa e desenhada? 

Como as estátuas, que são gente nossa 
Cansada de palavras e ternura, 
Assim tu me pareces no teu leito. 
Presença cinzelada em pedra dura, 
Que não tem coração dentro do peito. 

Chamo aos gritos por ti — não me respondes. 
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio. 
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes 
Por detrás do terror deste vazio. 

Mãe: 
Abre os olhos ao menos, diz que sim! 
Diz que me vês ainda, que me queres. 
Que és a eterna mulher entre as mulheres. 
Que nem a morte te afastou de mim! 

                       Miguel Torga
                       in 'Diário IV'