terça-feira, 6 de agosto de 2013

Pobre velha música!



Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te,
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.


           Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

Andorinha que passaste



Andorinha que passaste,
Quem é que te esperaria?
Só quem te visse passar.
E esperasse no outro dia.

       Fernando Pessoa

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Ah Deixem-me Dormir!

O Poeta

Olá, bom velho! é aqui o Hotel da Cova,
Tens algum quarto ainda para alugar?
Simples que seja, basta-me uma alcova...
(Como eu estou molhado! é de chorar...)


    O Povo

    O luar averte as orvalhadas sobre a rua!
    Jezus! que lindo...

Vamos! depressa! Vem, faze-me a cama,
Que eu tenho somno, quero-me deitar!
Ó velha Morte, minha outra ama!
Para eu dormir, vem dar-me de mamar...


       A Sra Julia

       São as Janeiras da Lua!


O Coveiro

Os quartos, meu senhor, estão tomados
Mas se quizer na valla (que é de graça...)
Dormem, alli, somente os desgraçados:
Têm bom dormir... bom sitio... ninguem passa...


    O Zé dos Lodos

    A lua é a nossa vacca, ó Maria!
    Mugindo...

Ainda lá, hontem, hospedei um moço
E não se queixa... E ha-de poupal-o a traça,
Porque esses hospedes só trazem osso,
E a carne em si, valha a verdade, é escassa.


       O Dr. Delegado

       A noite parece dia!


O Poeta

Escassa, sim! mas tenho ossada ainda,
Emquanto que a alma, ai de mim! nada tem...
Guia-me ao quarto... (a lua vae tão linda!)
Dize-me: quantos annos me dás? Cem?


    O Sr. Abbade

    E esta? Em vez de trazer a opa que é de logar
    Trouxe a d'anjinho!


       A Mulher do Moleiro

       É o luar, Sr. Abbade, é o luar...

Oh cem! E os que eu não mostro e o peito guarda...
Os teus mortinhos, sim! dormem tão bem:
«Dormi, dormi! que vossa mãe não tarda,
Foi lavar á Fontinha de Belem...»


    O Astronomo

    Isto lunar assim! Isto é o verao
    De S. Martinho!


O Coveiro

Aqui. Fica melhor do que em 1^a:
Colxão assim não acha em parte alguma!
Os outros são de chumbo, de madeira,
Mas este, veja bem, é sumauma...


       O Cego do Cazal

       Faz solzinho, que horas são?


Cantando:

«Colxão de raizes e de folhas, lizo,
Lençoes de terra brandos como espuma,
Dal-os-ei ao rol, no Dia de Juizo...»
Prompto. Quer mais alguma coiza? Fuma?


    Carlota

    Ó luar, anda mais devagarinho!
    Deixa dormir o meu menino...
         Coitadinho!


O Poeta

Mais nada. Boas-noites. Fecha a porta.
(Que linda noite! Os cravos vão a abrir...
Faz tanto frio)! Apaga a luz! (Que importa?
A roupa chega para me cobrir...)


    A Mãe do Poeta

    Aqui, espero-te, ha que tempo enorme!
    Tens o logar quentinho...

Toma lá para ti, guarda. E ouve: na hora
Final, quando a Trombeta além se ouvir,
Tu não me venhas acordar, embora
Chamem... Ah! deixa-me dormir, dormir!


          Deus

          Dorme, dorme.



                          António Nobre, in 'Só'

terça-feira, 23 de abril de 2013

Antes o Vôo da Ave


Antes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.
A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.
Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!

      Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XLIII"
      Heterónimo de Fernando Pessoa
      Foto: Fernando Andrezo

quinta-feira, 28 de março de 2013

Ressurreição


Ó musa linda que te votaram ao exílio
Em túmulo frio, vestida com mortalhas,
Ouço cantos de elegia, júbilo de gralhas
E as vozes bêbedas de poetas em concílio.

O dia nasce. Já vem a luz em teu auxílio.
A tua mão nesta mão que lutou em mil batalhas
Tem a maciez do linho, das tardes grisalhas,
E evoca, em rimas lustrosas, doce idílio.

E o poeta triste que te abandonou ao relento
É gelo, não tem amor, nem tem sentimento,
Como um túmulo cheio de trevas e vazio.

Vem comigo. Vamos bailar pelas estradas.
Vem contar junquilhos, despertar madrugadas,
Subir ao arco-íris, num completo desvario.

                  Luís R. Santos